Spoiler alert: não há tal lugar
Do Particular para o universal: eu estive lendo um livro maravilhoso do norueguês Karl Ove Knausgård, “Morte do Pai”, da série “Minha Luta”, onde ele narra seus pensamentos mais íntimos e todos os seus estados de espírito ao longo da vida. Colado nas suas memórias e experiências tão pessoais como a própria roupa que você usa neste momento, ele conta como se sentiu desde a notícia da morte de seu pai até até a primeira vez em que quase transou. É impossível não se maravilhar com a quantidade de detalhes, a fantástica memória para as coisas mais banais assim como a perfeição da forma de sinceridade que ele alcança com sua prosa. Segue exemplo.
Quando sua perspectiva de mundo se amplia, não mitiga apenas a dor que acarreta, mas também o sentido dessa dor. Compreender o mundo requer que se mantenha uma certa distância dele. Ampliamos aquilo que é pequeno demais para ser visto a olho nu, como moléculas e átomos, enquanto minimizamos grandezas como formações de nuvens, deltas de rios, constelações. Somente ao trazer as coisas para a dimensão dos nossos sentidos é que somos capazes de fixá-las. E a essa fixação chamamos conhecimento.
A morte do pai (Minha luta) (Knausgård, Karl Ove)
Como se vê, ele coloca um bocado de pensamento em tudo o que faz, e isso se reflete na sua prosa. Estou levando uma eternidade para ler seu livro até o fim, mas já estou programado para ler os outros cinco, que sei, são na mesma vibração. Com ele já aprendi que não dá para idealizar a paternidade e que seja na Noruega seja no Brasil, todos passamos por agruras idênticas.
Norueguês também era o dinheiro que ajudava no fundo Amazônia, que servia para, desde colocar gasolina nos carros do Ibama que iam fazer fiscalização, até coisas muito mais substanciais, como, veja só, coibir abusos e impedir desmatamentos bem como eventuais queimadas. Infelizmente esse dinheiro não virá mais, tão cedo, uma vez que somos “bons demais” para precisar desta “esmola”. “Serto?”.
A verdade é simples, mas ninguém consegue acreditar: estamos no limiar de mudanças climáticas catastróficas. Muito menos um certo Presidente da República que se cerca de puxa-sacos & parentes para dizerem a ele tudo o que ele quer ouvir. Harari falava disso em seu livro mais recente quando cita uma observação em relação ao PM de Israel, B. Netanyahu, e diz que é como se um buraco negro da influência os rodeasse e os impedisse de investigar a verdade.
Havia lá cerca de trinta pessoas, e cada uma delas tentava obter a atenção do Grande Homem, impressioná-lo com sua verve, pedir um favor ou obter alguma coisa dele. Se alguém lá sabia de algum grande segredo, fez um excelente trabalho guardando-o para si mesmo. Dificilmente foi culpa de Netanyahu, na verdade não foi culpa de ninguém. A culpa é da atração gravitacional do poder.
21 lições para o século 21 de Harari, Yuval Noah
Vivemos no tempo da Hubrys dos governantes, o pecado da arrogância contra os deuses segundo os gregos antigos, e a nossa Nêmesis, ou justiça distributiva, é, são, as mudanças climáticas. A Amazônia de amanhã é, quase certamente, o Cerrado de hoje. Enquanto isso nossos governantes ficam manipulando opinião pública, atacando dados e institutos de pesquisa e, como não poderia deixar de ser em toda boa autarquia que se preze como tal, matando o mensageiro que traz tão infame mensagem para depois ignorar a mensagem.
Ontem, como na antiga Grécia com as reuniões da Ágora, houve uma reunião espontânea na praça Alencastro e uma discussão grandiosa sobre os rumos que o mundo e o país esta tomando. Pela pouca quantidade de pessoas presentes você poderia dizer que o evento flopou, mas eu espero que você consiga imaginar a qualidade grande das discussões. E tivemos de performances artísticas a lugar de fala, a começar de uma, ao que tudo indica, indígena. Estou certo de que mais manifestações do tipo e muito maiores haverão de acontecer. Não é possível mais ignorar o elefante (ou capivara) na sala. Também não dá mais para arrotar patriotismo quando é tão óbvio que o clima não observa limites imaginários de território, também chamados de fronteiras. O meme mais divertido desta semana, ainda nesta conversa sobre hubrys, foi o “are you sure nasa”, onde um monte de negacionista tenta explicar à Agencia Espacial Americana que o Brasil não está passando por uma calamidade ambiental maior do que 2016 e que tudo poder ser normalizado.
Apesar de ouvir muitos pontos de vista ali, eu senti falta de uma em especial. A Mística. A religião faz parte desta discussão, sim, como não. Estive em um curso de padrinhos esta semana, e apesar de esperar o pior, um padre bolsominion, defendendo o direito à propriedade privada de uma elite econômica sobre uma maioria desamparada, como tem acontecido às vezes por aqui, encontrei uma pessoa leiga porém simples e sincera de coração que nos atendeu gentilmente e ensinou sobre os mandamentos.
Isso me lembrou de porque ainda não desistimos de acreditar, no fim das contas. O Papa Francisco, assim como a Igreja como um todo são grandes defensores dos povos indígenas e da conservação ambiental, ainda que nem todos os padres o sejam, principalmente os mato-grossenses. Mas tudo bem, porque não se pode jogar a água do banho com o bebê junto, e precisamos sim, saber separar a palavra de sua essência e o pregador de sua ideologia. Ou isso, ou cair no niilismo e na desesperança, descambando para um cinismo encarniçado com grandes chances entrar em uma estagnação espiritual tão comum, o famigerado “velho em vão” que o Buddha fala nas escrituras.
Não que precisemos de religião organizada, apenas que ela tem grande quantidade de beleza e sublimidade, exaltando nossas maiores qualidade como civilização humana, só isso. Uma das grandes conquistas da humanidade e que não nos cessa de maravilhar, a religião é um barco com muitos lugares mas com jeitinho único e especial para cada indivíduo. É preciso confiar em quem está no leme, mas também ajuda entender que não há leme nenhum.
Isso me lembra da primeira e última vez que estive na Amazônia, em 2009. Não falo do posto Amazônia que se prolifera aqui em Cuiabá na Avenida das Torres, mas da Amazônia ao norte do país mesmo. A dos rios imensos que se parecem com oceanos com a curvatura da terra escondendo o outro lado, das árvores imensas e ancestrais, do silêncio que apenas a mata ruidosa de bichos consegue trazer, do mistério da natureza pura e intocada, cheia de poder, de valor imenso e antiquíssimo. Nunca houve, para mim, maior lição de humildade do que navegar no Rio Guamá, sob efeito de um chá de ayahuasca clandestino que me passaram entre as barracas na aldeia da Paz, de barco, a caminho de uma palestra promovida pelo fórum social mundial e que nunca cheguei a participar. As raízes da árvores mais grossas do que meu corpo inteiro às margens, sorvendo aquela água escura e densa, e a descoberta de que somos nada em comparação à rede da vida que ali se instalou e, exuberante, ainda resiste. Ali Deus é e está — foi impossível não se sentir entregue. Não devemos rezar pela Amazônia que está sem nossa ajuda — devemos rezar por nós se ficarmos sem ela.